sábado, 31 de janeiro de 2009

ISSO É UM ESCÂNDALO!

É bastante comum no meio cristão, surgirem comentários a respeito de determinadas condutas que trazem o famoso escândalo. Roupas, adereços, diversões, bebidas, usos e costumes em geral... Parece que nada consegue fugir do crivo dessa sentença: - Irmão, cuidado para não ser motivo de “escândalo”.

É verdade, essa advertência não traz nenhuma novidade. No começo da igreja, S. Paulo já trazia esse assunto à baila, visando à harmonia da convivência entre os cristãos. Porém, creio ser importante fazermos algumas considerações.

Em primeiro lugar, vejamos o conceito de escândalo. Atualmente, o sentido de escandalizar tem muito a ver com a sensação de vergonha, constrangimento ou espanto que um cristão sente ao ver seu irmão praticando uma conduta que julga imprópria. Nem sempre foi assim. Pelo que se percebe na leitura da primeira carta aos Coríntios (8.7) e na carta aos Romanos (14.1), o escândalo não se tratava de vergonha, mas sim, de um comportamento que poderia levar um neófito a se confundir, e a praticar a idolatria.

Nos tempos da igreja primitiva, o mundo era predominantemente politeísta. O cristianismo, em expansão, já ultrapassava as fronteiras de Israel e ia brotar em meio a culturas acostumadas à diversidade de divindades. Neste contexto, temos S. Paulo em uma árdua missão: continuar a proclamação do evangelho e zelar das igrejas que ele havia ajudado a edificar. Diferentes povos, diferentes usos, costumes e formas de exercitar a espiritualidade. Porém, agora todos estavam unidos pelo sangue de Cristo e cabia ao apóstolo dos gentios orientar essa igreja, levando em consideração seus valores e suas origens. Como se não bastasse toda essa questão, ainda havia os conflitos pessoais, problemas de relacionamento e a discordância sobre assuntos de fé, ética e moral.

Dessa forma, S. Paulo adverte aos cristãos mais experimentados, para serem cautelosos com os mais novos e fracos na fé. Os mais experientes sabiam que não havia problema em comer quaisquer tipos de comidas, ofertadas a ídolos ou não, porém, o escândalo consistia no fato do neófito (inexperiente e acostumado a uma variedade de deuses), ver um irmão comendo algo previamente sacrificado a ídolo, se iludir e pensar que este estaria cultuando esta divindade estranha. Dessa maneira, o novo convertido seria levado a acreditar que a idolatria fazia parte da conduta cristã e, consequentemente, a praticaria, crendo estar apenas imitando um irmão mais velho de igreja (I Co 8.4-11).

Como se percebe, há um nítido contraste entre o escândalo neotestamentário e o atual. O princípio, que visava à preservação dos “pequeninos”, hoje é invocado pelos cristãos experimentados para informar o seu assombro e desagrado com determinados comportamentos. Quando se vê alguém com cinco, dez ou vinte anos de cristianismo dizer que está escandalizado com esta ou aquela atitude, nota-se que nada tem a ver com o escândalo bíblico, pois não temos os elementos para isso. Falta o neófito e falta também o motivo que levaria esse neófito a errar, uma vez que quase sempre o alvo da polêmica são usos e costumes (gostos, preferências e traços culturais) e não matéria de fé. Trata-se na maioria das vezes, de meros chiliques advindos daqueles que simplesmente não compreendem a diversidade humana e que, tentam fazer da bíblia suporte para seus preconceitos. Isso não é surpresa, uma vez que vive-se sob uma cultura evangelical de massas, que pretende a todo custo, padronizar e homogeneizar a consciência e as opiniões dos cristãos, indo totalmente contra a multiplicidade do corpo de Cristo.

A preocupação geral dos escandalizados é muito menos bíblica do que se imagina. Ao se verem desagradadas, as pessoas lutam com todos os argumentos que possuem para reverter a situação. Um pai de formação conservadora, inconformado ao ver o filho usando um piercing, certamente tentará convencê-lo de que isso é coisa para bandidos, rebeldes e pessoas que não merecem respeito algum. Se tal pai, diante do mesmo impasse, possuir formação cristã, provavelmente recorrerá ao escândalo e tentará constituir bases bíblicas para sustentar seu preconceito, e assim, demonizar a preferência do filho. Da mesma forma, na igreja, pessoas imbuídas de seu fundamentalismo, não conseguem entender que comportamentos diferentes dos seus também estão compreendidos no cristianismo. Compelidos pelo medo e aversão à diversidade, terminam por tentar dogmatizar questões que referem-se apenas à preferências, inventando assim novos pecados, tais como: fazer tatuagens, usar piercings, ingerir bebidas alcoólicas, dançar e, em alguns ramos extremamente conservadores, praticar esportes e usar adornos e maquiagens (no caso de mulheres).

Em seus conselhos tanto à Igreja de Roma quanto à de Corinto, S. Paulo não assume uma postura dogmática em relação aos usos e costumes, mas sim, em tom conciliador, defende que não há coisas puras e impuras por si só (Rm 14.14). A impureza está nos olhos de quem vê, portanto, independente do posicionamento acerca da questão, ele aconselha que o ponto de vista contrário seja respeitado (Rm 14.3). Ele vai ainda mais longe, além de não exigir que todos tenham a mesma opinião nem o mesmo comportamento, incentiva ainda que cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente (Rm 14.5b). Em suma, S. Paulo exorta os cristãos ao amor e faz todas essas recomendações para que seja mantida a boa convivência, sem exercer juízo de valor entre as opiniões diferentes, objetivando a harmonia no corpo de Cristo.

Resolvidos os problemas em relação ao escândalo bíblico e o que atualmente se classifica como tal, vejamos se este novo modelo possui validade e legitimidade como um regulador do comportamento cristão. Primeiramente, já vimos que o nosso modelo (chilique) pouco tem a ver com o modelo neotestamentário (indução involuntária ao erro alheio). Vimos também que o que chamamos escândalo tem suas raízes em preconceitos culturais e sociais, envolvendo usos e costumes, pouco tendo a ver com matéria de fé. Nesse momento, para mostrar que não há lógica nenhuma que sustente esse modelo (a não ser o fundamentalismo puritano), afirmo: esse escândalo é um fenômeno universal.

A sociedade comporta uma gama de pessoas, cada uma com suas peculiaridades. Na fé cristã não poderia ser diferente. Apesar de unidos em um só amor e um só Espírito, cada ser traz consigo valores, desejos, crenças, convicções... Tudo sempre baseado em sua experiência de vida e sua visão de mundo. Pois bem, nesse ambiente, dificilmente irão ocorrer unanimidades. De certa forma, creio que de uma maneira ou de outra, alguém sempre estará escandalizando a outrem. Reformados se escandalizam com a forma agitada do culto neopentecostal. Neopentecostais escandalizam-se com a aparente frieza do culto reformado. Cristãos de ramos mais conservadores do pentecostalismo escandalizam-se com a depilação e o corte de cabelo feminino, com o uso de barba e cabelo comprido por parte dos homens, com o uso de brincos, maquiagens e calças por parte das mulheres, pela prática do futebol... Enfim, a pluralidade de conceitos, a dialética entre as gerações e as paixões do coração do homem, nos levam a crer que, em certo aspecto, é impossível sair de casa sem estar causando escândalo a alguém. Até o próprio Cristo escandalizou a sociedade religiosa de sua época, andando com prostitutas, curando no sábado, ceando com corruptos e afrontando autoridades.

Porém, se esse modelo atual de escândalo fosse motivo para cercear a liberdade de consciência e de ação dos crentes, a igreja teria de passar por severas transformações, uma vez que é impossível a uniformidade de gostos, usos e costumes. Tomemos o seguinte exemplo: O irmão que toma bebidas alcoólicas, ainda que moderadamente, seria obrigado a abandonar seu hábito, em prol de um outro que não tolera o consumo. Este por sua vez, ia ter de abandonar o futebol do final de semana, para não chocar a irmãzinha que trabalha com danças na igreja e crê ser nociva a prática de tal esporte. Esta teria de abandonar sua atividade, pois segundo o conceito de uma outra irmã, mais velha, dança não é coisa de Deus. Esta, mais velha, teria de parar de depilar-se, para não causar mal-estar com outra, que por sua vez... Seria uma situação infinita, que nos levaria a fazer a mesma pergunta que o sábio apóstolo: Pois por que há de ser julgada a minha liberdade pela consciência alheia? (I Co 10.29b).

Como vimos, apesar de não haver lógica para o escândalo (chilique gospel), ele é mais comum do que imaginamos. Mesmo não sendo especificamente sobre ele que a bíblia trata, temos de tomar providências para que a liberdade cristã não seja tolhida pelo preconceito, pela hipocrisia e pelo conservadorismo barato, que é um sinal muito mais da intolerância frente à mudança da sociedade, do que propriamente o desejo de manter viva alguma coisa que diga respeito ao cristianismo de antigamente. A providência a ser tomada tem nome: ensino. Se há alguém ainda que creia que existe pecado na bebida, na música, no adereço, no gosto ou na preferência de alguém, que seja ensinado na verdade. Após isso, se houver discordância, restam as lições de S. Paulo na carta aos Romanos (cap. 14), onde lemos sobre o respeito e tolerância às diversas opiniões.

Por fim, creio que o papel do cristão não seja o julgamento, mas sim o amor. E é isso que o apóstolo sempre busca, em tom conciliatório. Mansamente, ao longo de todo o capítulo 14 de Romanos, ele busca acalmar os ânimos em relação a assuntos corriqueiros e mostrar a imagem do que realmente importa. Ele pede que, acima de tudo, cada um deixe de olhar apenas para suas paixões, mas considere o amor ao próximo e a sinceridade de consciência como arbítrios da conduta cristã.

Quanto a nós, que sejamos mais cautelosos antes de julgar o comportamento do próximo inadequado e, abandonando o fundamentalismo e a dureza do nosso coração, possamos aprender a amar aquele a quem Deus incondicionalmente ama, independente da nossa opinião e do nosso preconceito.